Um desejo diferente para 2015

O ano está chegando ao fim, dizem que hoje é o último dia. Uma frase que escutei recentemente não sai da memória da pele nem se findarem dois anos de uma só vez, de súbito. Nem se me lavarem com tira-manchas. Nem se esfregarem meu corpo inteiro com palha de aço.

O Talibã atacou uma escola militar no Paquistão, deixando mais de 140 mortos (em sua maioria, crianças) e, por meio do seu porta-voz, declarou que as mortes aconteceram para que os militares sentissem a dor que os membros do Talibã sentem quando seus familiares são assassinados pelo exército. “Queremos que sintam nossa dor”, foi a frase que disseram, é a frase que veio morar na minha memória.

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Por vivermos num mundo em que somos incapazes de sentir a profundidade da nossa dor — e, menos ainda, da dor dos outros –, a pior face da loucura nos espreita. Na mesma semana do ataque no Paquistão, uma amiga compartilhou uma frase absurda que leu num anúncio de analgésicos: “Não temos tempo pra sentir dor”. Por não termos mais tempo para sentir dor, a dor aumenta de tamanho, contrai gigantismo. Por não termos tempo para o sentimento do mundo, entramos em espirais que nos deixam mais doentes. O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade dizia: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Nós, o que temos? Temos apenas duas mãos e nada mais? Ignoramos a segunda parte do verso? Nossa poesia é partida.

A maior doença do homem é a ignorância? Ignorar a si mesmo e ignorar o outro são faces de uma mesma moeda? São tantos tipos de dores no mundo quanto tons de cores e timbres de voz. Em tempos em que a dor está anestesiada por tantos remédios e ilusões, senti-la é um ato político, estético, vivo. Como disse a jornalista Eliane Brum, “é o mal-estar que acusa o que resta de humano em nossos corpos (…) É preciso sentir o mal-estar. Sentir mesmo – e não silenciá-lo das mais variadas maneiras, inclusive com medicação. Ou, como diz a pensadora americana Donna Haraway: ‘É preciso viver com terror e alegria'”. Um desejo diferente para 2015: viver com terror e alegria. Viver com terror e alegria.

Consta nos diários do escritor tcheco Franz Kafka: “O ano que passou não estive desperto mais do que cinco minutos”. E me pergunto: quantos minutos eu estive desperto este ano? Menos que Kafka? Sejamos sinceros, quanto tempo passamos despertos para o terror e a alegria que se despem na realidade crua? Estamos despertos para as cicatrizes no solo? “Só quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes, seja mais profundo, como uma planta que só cresce a partir do contato íntimo com o solo”, disse o bailarino e coreógrafo brasileiro Klauss Vianna no livro “A Dança”. E a provocação de Klauss nos lança em outros movimentos: quantos minutos estivemos dispostos a entrar em contato íntimo com o chão? Quantos minutos estivemos despertos em 2014 para a gravidade dos corpos?

Assim como os animais aprenderam os padrões de coloração e texturas das florestas e nelas se camuflam, nós aprendemos os padrões de coloração e texturas das cidades áridas e nelas nos camuflamos, mais parecidos com asfaltos do que com gentes? Por quantos minutos somos capazes de olhar para o lado? Por quantos minutos somos capazes de olhar para uma dor? Vale vestir a dor antes de olhá-la, para que ela fique apresentável aos nossos olhos? O corpo da dor é sujo? Qual a relação entre reconhecer a dor do outro e exercitar empatia e compaixão? Não hesitemos em nos embriagar com copos e mais copos de interrogações.

No dia 24 de dezembro, visitei um cortiço no centro de SP onde mora uma mulher que se enclausurou na própria dor. Joga suas fezes pela janela da sua casinha sem banheiro, comunica-se por frestas e bilhetes. Mora na quase incomunicabilidade. De tão dolorosa, soa como ficção a história da senhora. No mesmo dia 24, enquanto estava numa lojinha com uma amiga, um morador de rua nos abordou:

“Vocês têm um real para me dar? É para a cachaça.”

A dose de cachaça serviria para dormir um pouco até a noite. Daí o homem contou para a gente que passaria uma noite de Natal elegante, exibia um sorriso bonito por entre a voz rouca e torta que denotava o uso de crack. Disse que antes de morar na rua se dedicava à arte de estampar camisetas. Perguntamos o porquê dele não mais exercer seu ofício. O homem mostrou seu braço machucado, mãos e dedos tortos. Falou que sofreu uma queda numa ponte. Amigavelmente, perguntamos se ele estava bêbado e então caiu da ponte, se foi empurrado pelo álcool. Ele olhou para a gente com uma expressão sutil e aguda, como quando se passa linha por uma agulha bem fininha. Não era uma queda por acidente, com seu olhar deu para entender que ele tentou suicídio.

O que passa pelas entranhas do homem que encontrei na rua para que ele tenha pulado de uma ponte, sonhando em pôr ponto final na própria vida? Que dores tão fortes são essas? Ele tem alguém com quem partilhá-las? Quer partilhá-las? Nós queremos partilhar as dores que guardamos nos nossos caroços? Há quanto tempo deixamos de nos comunicar com os outros e nos trancamos em uma casinha diminuta, em que só sabemos abrir a janela para jogar nossos restos para fora? Numa palestra em que estive há uns meses, o provocador de ventanias e sociólogo Edgar Morin ressaltou bastante o fato de que as pessoas não sabem mais lidar com a dor. Disse que deveriam existir casas de solidariedade em cada esquina, onde fosse possível aprender a lidar com sofrimentos.

Se enfaticamente abrirmos as comportas da nossa dor e das dores dos outros, talvez nos afogaremos — alguns podem pensar assim. Pessoalmente, sinto que é melhor morrer afogado naquilo que há de profundo do que definhar apenas por tocar a superfície das coisas. E dentro da dor não há só feiura e breu, que fique claro. Aproximar-se da dor não é mudar-se para uma sala escura. Há beleza e mistério na dor. Muito do que há de bonito e abundante no mundo surge da dor — leram O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa? Dá para esquecer o quadro Guernica, de Picasso?

Entrar em contato com a dor não quer dizer andar cabisbaixo e desalegre por entre os dias. Entrar em contato com a dor, com o chão e com a gravidade quer dizer andar desperto pelo menos mais de cinco minutos por ano.

*

Uma das intervenções poéticas que fiz nas ruas em 2014 se chama “Faço seu retrato em forma de poesia”. A ação aconteceu na Praça da Luz, em São Paulo. Uma garota de programa com quem falei nessa intervenção me trouxe um olhar que se entrelaça profundamente com as dores que sentimos ou negamos hoje. Perguntei o que ela mais gostava de fazer, ressaltei que suas paixões seriam o tema do poema. Ela me disse que gostava muito do namorado, de dançar forró com seu amor. Daí perguntei: O que é amar? A resposta veio direta como um dardo: “Amar é lembrar. Amar é lembrar de amar sem que isso seja um esforço. Amar é lembrar do nosso amor.”

Se entendermos que amar tem a ver com lembrar, o ato de lembrar a dor (dos outros e a nossa) é expressão de cuidado. Enquanto eu lia a frase do Talibã sobre o atentado que matou uma multidão de crianças (“queremos que eles sintam a nossa dor”), refletia sobre como devo seguir depois de entrar em contato com tais palavras. Devo andar com essa dor a tiracolo? Por quanto tempo devo me lembrar dela? Devo colocá-la no vaso onde guardo meus olhos à noite, para que eles absorvam a substância da qual essas palavras se compõem?

Quando a gente anda com a dor descoberta, do nosso lado, muitas vezes ela nos leva para lugares que não visitaríamos sem sua companhia. Não deixemos que certas dores saiam da pele nem se nos lavarem com tira-manchas. Nem se findarem dois anos de uma só vez, de súbito. Nem se esfregarem nosso corpo com palha de aço.

Lembrar a dor é um ato amoroso, político, estético, vivo.

* um agradecimenso especial à Serena Labate, que este ano me ajudou a sentir mais intimidade com o chão.

2 pensamentos sobre “Um desejo diferente para 2015

  1. que lindo texto. num dos sutras budistas se fala sobre luz e escuridão, mas pode ser sobre a beleza dentro da dor…
    “Dentro da luz há escuridão.
    Mas não tente compreender esta escuridão.
    Dentro da escuridão há luz
    Mas não procure por esta luz.
    Luz e escuridão são um par,
    Como o pé na frente e o pé de trás, ao andar.”

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