Carta aberta a Sebastião Salgado

Meu querido Tião,

esta é uma mensagem de um amigo que você nunca viu pessoalmente.

Você não me conhece, mas me dou a liberdade de chamá-lo por seu apelido e por “você” em vez de “senhor”, pois ultimamente convivi bastante com suas obras e histórias. Esta semana fui pela terceira vez assistir ao filme sobre sua trajetória. Que fique claro: nunca assisti a um filme três vezes no cinema. Na verdade nunca nem assisti a um mesmo filme duas vezes no cinema. Diante das suas fotos e falas pela terceira vez, chorei novamente, e copiosamente, bem aquele choro de criança que acabou de nascer.

O que você demonstra com sua presença para me provocar tanto? Você entra na ferida do mundo e espreme os olhos para ver os poros do abismo. Sim, amigo Tião, você espreme os olhos para ver os poros do abismo.

Você tateou um caminho que passou pelo movediço fundo do poço para só depois voltar à terra firme e fértil — como dizia o poeta Rumi, para pegar água é preciso ir até o fundo do poço. Você fotografa o massacre em Ruanda com uma coragem sensível. Dá para sentir nas suas falas em entrevistas que sua obra é a expressão de uma trajetória movimentosa como as asas de um beija-flor. Pensando em como sua história me impactou, me lembrei de algumas palavras do educador português Agostinho da Silva sobre o poeta Fernando Pessoa: “Costumo dizer que o Fernando Pessoa ser chamado de grande poeta não é por causa dos poemas que escreveu. Pode-se encontrar muitos poemas tão bons como os dele. A questão foi o Pessoa ter feito da vida dele um poema. Dedicar-se completamente aquilo que queria, sem se importar se comia, se não comia, onde dormia, se não tinha onde dormir, tanto que fazia… Isso é que foi a grande criação poética de Pessoa. E de vez em quando escrevia um poema. Alguns até saíram bastante bons como se sabe”. Bem assim sinto que acontece com você, caro Tião. Me impressiona seu agudo interesse em encontrar-se com o outro, seja um refugiado de guerra, seja uma baleia de 40 toneladas, seja um iceberg. Seu interesse agudo pelo outro é um poema. Seu movimento febril e insistente, de alguém que passa anos e anos observando seres humanos em movimento, e paisagens se desdobrando como origamis feitos e desfeitos pelo vento, é o que me convida a aproximar-me mais do que sou realmente capaz de criar.

No ano passado, um artista que eu admirava muito me frustrou quando o vi numa palestra. Demonstrou uma frieza estranha diante das próprias criações. Algumas pessoas me falaram: “aprenda a separar o artista da obra…”. E aí percebi: o que me interessa de verdade não são artistas friamente profissionais com obras inspiradoras, mas sim pessoas inspiradoras, cujas vidas são calorosos e perplexos poemas, que de vez em quando criam obras tão inspiradoras quanto suas vidas. Não te conheço pessoalmente e quem sabe conhecê-lo frente a frente até poderia me frustrar, nunca se sabe. De qualquer maneira, pelo que vi no filme O Sal da Terra e em outras falas e trabalhos, seu movimento de vida se parece mais com a entrega do Fernando Pessoa do que com o redemoinho de friezas planas e vaidades que outros artistas tanto alimentam.

Sua entrega à fotografia é uma ação de risco… Você diz que muitas vezes deixou a câmera no chão para chorar diante do que via… Quantas histórias hoje te habitam? Quantos perigos moram no caminho daqueles que se entregam por inteiros num movimento ou causa? Ontem mesmo vivi uma situação que me apontou novamente a importância de sustentarmos o risco inerente ato ato de dar largos saltos, sinto que vale compartilhá-la.

Num curso com a Rosane Nóbrega, uma artista que me inspira enormemente também, ela deu bolinhas de plástico para educadores jogarem um ao outro, uma bolinha para cada pequeno grupo. Sim, o exercício era bastante simples, em cada pequena roda de educadores havia uma bolinha para uma pessoa jogar na mão da outra e depois lançar para outro participante e assim por diante. Em seguida ela deu mais uma bolinha para cada grupo. Volta e meia alguma bolinha caía no chão. E aí ela tirou as bolinhas e deu para cada grupo uma bexiga d’água. Quando chegou a bexiga d’água, todo mundo fez uma expressão de espanto. E se a bexiga d’água cair? Bem mais perigosa que a bolinha, a bexiga trazia risco para o simples ato de passar uma bolinha para uma outra pessoa pertinho de você. E aí ela deu mais uma bexiga para cada grupo e o risco aumentou. Friozinho na barriga… Então ela tirou as duas bexigas de cada grupo e veio com um pote delicado e grande, que parecia de vidro e representava um perigo ainda maior em caso de queda.

O receio coletivo se instaurou nos grupos. Como jogar aquele recipiente frágil para alguém sem deixá-lo cair? E se cair? Pedacinhos para todo lado? A Rosane pediu para não jogarmos o recipiente ainda. Pediu para cada membro do grupo sentir o recipiente na mão. E para a pessoa que iria jogá-lo primeiro havia uma tarefa: escolher quem receberia o pote delicado em mãos, para que o apanhador se preparasse também. A Rosane criou uma sólida expectativa para o momento do lançamento do objeto mais frágil que parou nas nossas mãos até então. Quando estávamos a alguns segundos dos lançamentos, ela pediu que devolvêssemos os potes a ela, para conversarmos um pouco — ou seja, não jogamos os recipientes mais frágeis. Daí falamos sobre o teor de risco em jogar cada um dos objetos. Sobre a demanda de presença que a bexiga d’água solicitou da gente. E sobre a exigência aguda que o pote frágil mobilizou apenas por imaginarmos que o jogaríamos.

A bolinha de plástico é o estado da acomodação em potencial: fácil de jogar, risco zero de cair e quebrar… Quem fica com a bolinha d’água na mão está num estado mais acordado, mais presente, mais riscoso. E quem segura o gordo recipiente quebradiço está num estágio em que o risco se revela em cada migalha de segundo. O virtuose, aquele que se torna mestre na sua arte, é este que faz malabares com montanhas de vidro, assumindo toda a enxurrada de risco que essa ação concentra. Com tantas viagens dentro de si mesmo, e tantos riscos assumidos, sua história me parece a narrativa de quem lida com vidro boa parte do tempo.

O segundo ponto que me atraiu a atenção — e a emoção — foi seu olhar que percebe em cada encontro a narrativa inteira da civilização. Como quando você está diante das fotos dos mineiros na Serra Pelada, no Pará, e conta que essa cena evoca um desfile da história: “Quando cheguei à beira desse buraco imenso, vi passar diante de mim, numa fração de segundo, a história da humanidade. A história da construção das pirâmides, a torre de Babel, as minas do rei Salomão…”. Como quando você olha para uma cena de fome e esfarelamento da vida nas areias do Sahel e capta exatamente um olhar de brutal beleza e intimidade entre uma mãe e uma criança — ao prestar atenção nesta cena, você está olhando ao mesmo tempo para todas as mães e filhos que um dia trocaram um olhar denso de amor e visceral conexão. Como quando você olha para a pata de uma iguana nas ilhas Galápagos e com essa pata sugere que olhemos também a mão humana, propõe que recordemos as mãos de cavaleiros ancestrais que saíam para suas batalhas com escudos por todo o corpo, espalhados metalicamente pela pele como escamas. Você nos convida a olhar para o mundo inteiro contido numa mão, num encontro entre mãe e filha, num dia de trabalho em busca de ouro. Nos convida a fitar o caráter universal do momento presente. Nos convoca a tocar o mundo inteiro que gira veloz e poeticamente dentro de cada miúdo segundinho. Nos chama a sentir de verdade as frases do poeta William Blake:

Ver um mundo num grão de areia e um céu numa flor silvestre,
ter o infinito na palma da sua mão e a eternidade numa hora.

(To see a world in a grain of sand, and heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand and eternity in an hour.)

Como negar um convite para ver o mundo num grão de areia do deserto de Sahel, do deserto do sertão, do imprevisível deserto que vive dentro do coração humano? É um convite para olhar com lupa e encontrar na imagem vista um fio sem fim.

Há uns dias notei e fotografei formiguinhas carregando folhas… E escrevi:

manchete do jornal das miudezas: formigas são flagradas carregando pedaços de árvores

E o que estava na minha mente? Que as formigas carregando folhas me convidavam a ver o trabalho de todos os trabalhadores na Terra hoje, e ontem, e amanhã. Esta mínima cena é uma conjunção, um nó entre mil linhas estendidas na esteira do tempo.

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Esta carta, aliás, é um convite para vermos nela outras cartas já escritas para amigos distantes. É uma carta apenas, mas não deixa de evocar o ato universal de compartilhar o que sentimos com alguém em quem, seja lá por quais motivos, admiramos e confiamos. E esta é uma carta de agradecimento, Tião. Obrigado por me apontar a brutalidade e a beleza na sua frágil dança.

Que um dia nos encontremos para trocar fotografias das nossas escamas, dos grãos de areia escancarados nos desertos e das gotas de mistérios que caem sobre nós todos os dias.

André Gravatá

4 pensamentos sobre “Carta aberta a Sebastião Salgado

  1. André! Ah, André!! Que dizer de ti, menino?

    Cada vez que topo com seus escritos me retornam estranhezas de infância, asas de borboletas, penas perdidas de passarinhos me revolteiam a alma e me trazem de volta momentos de quando eu, criança, sentava quieta a olhar para um gravetinho qualquer perdido no meio de um monte de cisco e me subia ao coração que aquele graveto era ele só, alienado do mundo, em seu destino único de ser graveto apenas, e não outra coisa e isso lhe bastava. Então me brotava no coração um sentimento de completude, de que me bastava ser eu, no momento presente, sob a mesma força que sustenta tanto as grandezas quanto as insignificâncias. Só depois de adulta vim saber o nome desse exercício que me acompanha até hoje: meditação. É… na alma de todos nós há tantas coisas parecidas!

    Também gosto demais do trabalho do Tião, demais! Desde meus 17 anos, quando, em casa de uma amiga, vi uma revista com uma foto dele – era uma árvore imensa, cheia de crianças em seus galhos. Ano passado assisti a uma palestra dele aqui em Curitiba. Inesquecível.
    Tão linda sua carta pra ele – acho que ninguém lhe escreveu tão lindo assim 🙂
    Precisa publicar em outros lugares mais, se não o fez.
    Muito grata por existir e ter escrito esta carta. Tião com as fotos e você com as palavras. É de arrepiar!

    Abraço grande!
    Continue escrevendo!

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