manifesto das miudezas

fósforo

há demasiado perigo no delírio de grandeza
que despreza a escala animal
que ignora a miudeza
que levanta belos montes sem nada de beleza
que invade mariana
lama
lama
lama
lama
na correnteza

resgatemos os pés como unidade de medida
resgatemos as portas de saída
resgatemos a alma das coisas-aqui
resgatemos yanomami e tupi
resgatemos a miudeza na mira do contato
resgatemos o desconhecido como habitat

porque o pequeno não é banalidade
porque dentro de um palito de fósforo dorme fogo suficiente para incendiar sua casa inteira
porque miudeza é feita da matéria do detalhe
porque o olho se movimenta mais quando encontra um cisco
porque não dá para buscar miudezas, mas apenas ser encontrado por elas
porque miudezas nos desarranjam e, na desorganização, há uma chance de esbarrarmos em nós mesmos
porque miudezas pedem que olhemos seu avesso
porque miudeza é sinônimo de intimidade
porque proximidades somam a gente para mais
porque crianças, barros e formigas são mestres da indisciplina das miudezas
porque o parto em que nasceu a primeira bolinha de gude foi uma festa
porque sem intimidade a aldeia morre
porque agora é hora de desentulhar a estrada da imaginação
porque a palavra miudeza vem do tupi miudezí, que significa encantamento
porque sem encantamento a aldeia morre
porque miudeza é porta de entrar silêncio
porque rastro de flor é pétala
porque em tempestade de ruído, silêncio é ponta de sol
porque sem as formigas o chão respiraria menos
porque o respeito pelas miudezas tornaria o cuidado com as grandezas uma consequência natural
porque sequoias nascem de sementes
porque oceano acontece quando gotas se encontram
porque dá para confundir estrela com vaga-lume
porque a lua cabe dentro do nosso olho
porque considerar que alguém não está à sua altura é perverso
porque não é justo ficar na ponta dos pés para olhar quem é da sua altura
porque quem planta miudeza, colhe inesperado
porque miudeza rima com boniteza, mas também com estranheza
porque miudezas nos ensinam a prestar atenção nos “derrepentes”, naquilo que salta perto
porque não dá para se aproximar das miudezas se quisermos controlá-las
porque miudezas são tão frágeis que, se tentamos controlá-las, elas escapam
porque precisamos aprender a lidar com o que escapa, sendo que tudo escapa

* acompanhe o jornal das miudezas por aqui.

Carta aberta a Sebastião Salgado

Meu querido Tião,

esta é uma mensagem de um amigo que você nunca viu pessoalmente.

Você não me conhece, mas me dou a liberdade de chamá-lo por seu apelido e por “você” em vez de “senhor”, pois ultimamente convivi bastante com suas obras e histórias. Esta semana fui pela terceira vez assistir ao filme sobre sua trajetória. Que fique claro: nunca assisti a um filme três vezes no cinema. Na verdade nunca nem assisti a um mesmo filme duas vezes no cinema. Diante das suas fotos e falas pela terceira vez, chorei novamente, e copiosamente, bem aquele choro de criança que acabou de nascer.

O que você demonstra com sua presença para me provocar tanto? Você entra na ferida do mundo e espreme os olhos para ver os poros do abismo. Sim, amigo Tião, você espreme os olhos para ver os poros do abismo.

Você tateou um caminho que passou pelo movediço fundo do poço para só depois voltar à terra firme e fértil — como dizia o poeta Rumi, para pegar água é preciso ir até o fundo do poço. Você fotografa o massacre em Ruanda com uma coragem sensível. Dá para sentir nas suas falas em entrevistas que sua obra é a expressão de uma trajetória movimentosa como as asas de um beija-flor. Pensando em como sua história me impactou, me lembrei de algumas palavras do educador português Agostinho da Silva sobre o poeta Fernando Pessoa: “Costumo dizer que o Fernando Pessoa ser chamado de grande poeta não é por causa dos poemas que escreveu. Pode-se encontrar muitos poemas tão bons como os dele. A questão foi o Pessoa ter feito da vida dele um poema. Dedicar-se completamente aquilo que queria, sem se importar se comia, se não comia, onde dormia, se não tinha onde dormir, tanto que fazia… Isso é que foi a grande criação poética de Pessoa. E de vez em quando escrevia um poema. Alguns até saíram bastante bons como se sabe”. Bem assim sinto que acontece com você, caro Tião. Me impressiona seu agudo interesse em encontrar-se com o outro, seja um refugiado de guerra, seja uma baleia de 40 toneladas, seja um iceberg. Seu interesse agudo pelo outro é um poema. Seu movimento febril e insistente, de alguém que passa anos e anos observando seres humanos em movimento, e paisagens se desdobrando como origamis feitos e desfeitos pelo vento, é o que me convida a aproximar-me mais do que sou realmente capaz de criar.

No ano passado, um artista que eu admirava muito me frustrou quando o vi numa palestra. Demonstrou uma frieza estranha diante das próprias criações. Algumas pessoas me falaram: “aprenda a separar o artista da obra…”. E aí percebi: o que me interessa de verdade não são artistas friamente profissionais com obras inspiradoras, mas sim pessoas inspiradoras, cujas vidas são calorosos e perplexos poemas, que de vez em quando criam obras tão inspiradoras quanto suas vidas. Não te conheço pessoalmente e quem sabe conhecê-lo frente a frente até poderia me frustrar, nunca se sabe. De qualquer maneira, pelo que vi no filme O Sal da Terra e em outras falas e trabalhos, seu movimento de vida se parece mais com a entrega do Fernando Pessoa do que com o redemoinho de friezas planas e vaidades que outros artistas tanto alimentam.

Sua entrega à fotografia é uma ação de risco… Você diz que muitas vezes deixou a câmera no chão para chorar diante do que via… Quantas histórias hoje te habitam? Quantos perigos moram no caminho daqueles que se entregam por inteiros num movimento ou causa? Ontem mesmo vivi uma situação que me apontou novamente a importância de sustentarmos o risco inerente ato ato de dar largos saltos, sinto que vale compartilhá-la.

Num curso com a Rosane Nóbrega, uma artista que me inspira enormemente também, ela deu bolinhas de plástico para educadores jogarem um ao outro, uma bolinha para cada pequeno grupo. Sim, o exercício era bastante simples, em cada pequena roda de educadores havia uma bolinha para uma pessoa jogar na mão da outra e depois lançar para outro participante e assim por diante. Em seguida ela deu mais uma bolinha para cada grupo. Volta e meia alguma bolinha caía no chão. E aí ela tirou as bolinhas e deu para cada grupo uma bexiga d’água. Quando chegou a bexiga d’água, todo mundo fez uma expressão de espanto. E se a bexiga d’água cair? Bem mais perigosa que a bolinha, a bexiga trazia risco para o simples ato de passar uma bolinha para uma outra pessoa pertinho de você. E aí ela deu mais uma bexiga para cada grupo e o risco aumentou. Friozinho na barriga… Então ela tirou as duas bexigas de cada grupo e veio com um pote delicado e grande, que parecia de vidro e representava um perigo ainda maior em caso de queda.

O receio coletivo se instaurou nos grupos. Como jogar aquele recipiente frágil para alguém sem deixá-lo cair? E se cair? Pedacinhos para todo lado? A Rosane pediu para não jogarmos o recipiente ainda. Pediu para cada membro do grupo sentir o recipiente na mão. E para a pessoa que iria jogá-lo primeiro havia uma tarefa: escolher quem receberia o pote delicado em mãos, para que o apanhador se preparasse também. A Rosane criou uma sólida expectativa para o momento do lançamento do objeto mais frágil que parou nas nossas mãos até então. Quando estávamos a alguns segundos dos lançamentos, ela pediu que devolvêssemos os potes a ela, para conversarmos um pouco — ou seja, não jogamos os recipientes mais frágeis. Daí falamos sobre o teor de risco em jogar cada um dos objetos. Sobre a demanda de presença que a bexiga d’água solicitou da gente. E sobre a exigência aguda que o pote frágil mobilizou apenas por imaginarmos que o jogaríamos.

A bolinha de plástico é o estado da acomodação em potencial: fácil de jogar, risco zero de cair e quebrar… Quem fica com a bolinha d’água na mão está num estado mais acordado, mais presente, mais riscoso. E quem segura o gordo recipiente quebradiço está num estágio em que o risco se revela em cada migalha de segundo. O virtuose, aquele que se torna mestre na sua arte, é este que faz malabares com montanhas de vidro, assumindo toda a enxurrada de risco que essa ação concentra. Com tantas viagens dentro de si mesmo, e tantos riscos assumidos, sua história me parece a narrativa de quem lida com vidro boa parte do tempo.

O segundo ponto que me atraiu a atenção — e a emoção — foi seu olhar que percebe em cada encontro a narrativa inteira da civilização. Como quando você está diante das fotos dos mineiros na Serra Pelada, no Pará, e conta que essa cena evoca um desfile da história: “Quando cheguei à beira desse buraco imenso, vi passar diante de mim, numa fração de segundo, a história da humanidade. A história da construção das pirâmides, a torre de Babel, as minas do rei Salomão…”. Como quando você olha para uma cena de fome e esfarelamento da vida nas areias do Sahel e capta exatamente um olhar de brutal beleza e intimidade entre uma mãe e uma criança — ao prestar atenção nesta cena, você está olhando ao mesmo tempo para todas as mães e filhos que um dia trocaram um olhar denso de amor e visceral conexão. Como quando você olha para a pata de uma iguana nas ilhas Galápagos e com essa pata sugere que olhemos também a mão humana, propõe que recordemos as mãos de cavaleiros ancestrais que saíam para suas batalhas com escudos por todo o corpo, espalhados metalicamente pela pele como escamas. Você nos convida a olhar para o mundo inteiro contido numa mão, num encontro entre mãe e filha, num dia de trabalho em busca de ouro. Nos convida a fitar o caráter universal do momento presente. Nos convoca a tocar o mundo inteiro que gira veloz e poeticamente dentro de cada miúdo segundinho. Nos chama a sentir de verdade as frases do poeta William Blake:

Ver um mundo num grão de areia e um céu numa flor silvestre,
ter o infinito na palma da sua mão e a eternidade numa hora.

(To see a world in a grain of sand, and heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand and eternity in an hour.)

Como negar um convite para ver o mundo num grão de areia do deserto de Sahel, do deserto do sertão, do imprevisível deserto que vive dentro do coração humano? É um convite para olhar com lupa e encontrar na imagem vista um fio sem fim.

Há uns dias notei e fotografei formiguinhas carregando folhas… E escrevi:

manchete do jornal das miudezas: formigas são flagradas carregando pedaços de árvores

E o que estava na minha mente? Que as formigas carregando folhas me convidavam a ver o trabalho de todos os trabalhadores na Terra hoje, e ontem, e amanhã. Esta mínima cena é uma conjunção, um nó entre mil linhas estendidas na esteira do tempo.

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Esta carta, aliás, é um convite para vermos nela outras cartas já escritas para amigos distantes. É uma carta apenas, mas não deixa de evocar o ato universal de compartilhar o que sentimos com alguém em quem, seja lá por quais motivos, admiramos e confiamos. E esta é uma carta de agradecimento, Tião. Obrigado por me apontar a brutalidade e a beleza na sua frágil dança.

Que um dia nos encontremos para trocar fotografias das nossas escamas, dos grãos de areia escancarados nos desertos e das gotas de mistérios que caem sobre nós todos os dias.

André Gravatá

Carta aberta ao mestre Manoel de Barros

Querido Manoel, não sei como começar esta carta… ela é uma tentativa de amarrar o tempo no poste. Como a gente amarra o tempo no poste, mestre Manoel? Esta carta é um vareio da imaginação, bem como o vareio que o senhor teve aos sete anos, quando tentou pegar na bunda do vento. Amarrar o tempo no poste é como pegar na bunda do vento?

12e Soube que o senhor está internado, temporariamente impossibilitado de pendurar bentevis no sol. O que o senhor tem que barra os bentevis? Há uma pergunta que dança em mim: os anos pesam o peso da pedra ou do algodão ou da pedra e do algodão ao mesmo tempo?

Escrevo-lhe esta carta para agradecê-lo pelo que fez por mim sem nem saber que fez. Pois foi com o senhor que se quintuplicou em meus voos a importância de apalpar as intimidades do mundo.

Foi com o senhor que descobri a esticadeza de horizontes e o carregamento de água na peneira. {Minha mãe até hoje reclama por eu passar todos os dias carregando água na peneira. Abaixo há uma foto minha com a peneira em que peneireio nascentes desde menininho.}

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Foi com o senhor que aprendi a sapiência do bocó. Que aprendi a ser endivinado pelo orvalho e desaprendido pelas horas do dia. Que aprendi que dá para pegar na voz de um peixe. {Estava numa loja de papéis, e a pessoa que me atendeu disse que o filho dela, de uns 6 anos, gosta de poesia. Daí peguei uma caneta na hora e lancei sobre o papel um presente ao rapaz, uma peraltagem manoeleira: “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de azul”.}

Foi com o senhor que vi cenas nunca antes imaginadas nem no império brinquedeiro da minha infanciência. Com o senhor andei por um rio que cortava a tarde pelo meio. De azul, o senhor me mostrou outonos mantidos por cigarras e lamas fascinando as borboletas. Me mostrou um homem quase-árvore, que guardava um encolhedor de rios e um abridor de amanhecer {jamais vou me esquecer de como o abridor de amanhecer auroreia a terra}. O senhor me ensinou a apalpar os perfumes do sol. Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas. E não entendi. E o senhor me deu um desafio: “ao voltar para a casa, fotografe o silêncio”. E tentei, tentei, mas não consegui sacar nenhuma imagenzinha do silêncio. E voltei para uma outra conversa. E perguntei como fotografar o que eu não via. E o senhor não me explicou, só me levou para perto de uma árvore em que pássaros gorjeavam. Que cena fecundante, que bonitezaria! E o senhor me perguntou: “por que o gorjeio é mais bonito do que o canto?”. Não soube responder, estava eu em estado de voz perdida, penetrado pelos gorjeios. Passou um tempo e o senhor continuou: “gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução. É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia”. E o senhor pediu para eu olhar a árvore com atenção. “As árvores ficam loucas se estão gorjeadas”, disse. Sim, foi a primeira vez que vi o delírio de uma árvore. E foi como um balde de água cheio de fogos de artifício cremosos se derramando sobre meu olhar… Aí fotografei o silêncio do delírio da árvore gorjeada.

O senhor já me convidou para tantos festejos linguajeiros que nem há como agradecimensar tantas entradas no reino da poesia. O senhor é sábio em celebrar vazios – e sabe bem como chamar outros para partilhar sua fervura. O senhor convida homens sozinhos como pentes, que têm vozes em que nascem árvores. O senhor convida aves que sonham pelo pescoço, macacos que gorjeiam, lagartixas com odor verde, caramujos-flores, corós transparentes, ciscos feitos de gravetos, areia, grampos e cuspes de aves, mulheres de 7 peitos, moscas que se dependuram na beira de ralos, córregos, formigas ajoelhadas em pedras, baratas que passeiam nas formas de bolo, chuvas vestidas de sóis, meninos que veem a cor das vogais, sapos que sabem divinamentos, caracóis que não gosmam em latas, latas nuas e todos os tipos de pessoas com cabeças apinhadas de parafusos que farfalham.

Mestre Manoel, vidente das coisas trocadas, ousadioso dos instintos primevos, o senhor é mesmo o apogeu do chão. É quem monumentou as miudezas e também as formigas espremidas pela neblina. E o tibun das crianças. E a cobra de vidro que dá a volta por trás da sua casa.

O escrevimento dessa carta me deu vontade de rasgar inteirinhinha a fantasia da razão, está na cara que todos os caminhos levam à ignorância. Tenho gostos pela vadiagem com letras… Tenho que reaprender a errar a língua… E compartilho uma novidade: vou criar peixes no bolso, está decidido. Depois o senhor me manda algumas sugestões sobre cuidadoria de cardumes bolsais? Quem sabe dá para criar um Tratado Geral das Criações no Bolso.

Me despeço… Enquanto me despeço, remexo, com um pedacinho de arame, o poço das lembranças manoeleiras que guardo em mim. Os ventos levam-me para longe, os ventos lhe levam para longe… Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel… repetir, repetir, repetir… até ficar diferente, até contrair visão fontana.

Que uma chuva de pingos de sol leves caiam feito mel sobre o senhor. Já é hora de eu tomar meu banho no orvalho da manhã.

Tibun.

André Gravatá

 

Obs.: Mestre Manoel, não foi possível amarrar o tempo no poste… Minutos antes de eu partilhar a carta que escrevi para o senhor, escrita com a água da fonte que sai dos olhos, o senhor voou fora da asa. Agradecimenso por pintar tantos azuis no mundo. Que o fim lhe olhe de azul também. Que o fim lhe olhe de azul. Manoel, Manoel, Manoel…